sábado, 25 de fevereiro de 2012

RELEMBRANDO BARTOLOMEU CORREIA DE MELO - POR PEDRO SIMÕES NETO - (O SANTO OFÍCIO 2010).


PEDRO SIMÕES NETO (*)
BARTOLOMEU CORREIA DE MELO


BARTOLOMEU CORREIA DE MELO (2-3)

POR O SANTO OFÍCIO | 27 JUNHO, 2010

Por Pedro Simões Neto*

A criação
Pintou de um verde luxuriante o vale lá-embaixo, chegando até a embriaguez e a um embaralho nos olhos, espantado com tanta beleza. Nem acreditou no que tinha feito.

Coloriu o céu de algo mui levemente fletido num verde muito esmaecido colhido do canavial e de todos os tons de azul que inventaram e pudessem ser – só assim conseguiu a cor do manto de Nossa Senhora, a homenagem que lhe fez. Depois de se embriagar de tanto azul no azul do céu, e mais azul não havia, ouviu Carlos Pena Filho:
Então pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas
depois vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir de nós o azul ausente
e aprisionar o azul nas coisas gratas
Enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas

Pôs o verde sobre o azulado, puxado mais para o verde cana, nas águas dos rios e dos mares que beijam a terra da imaculada conceição.

A alquimia fez e agrimensurou os solos mais variados – da piçarra da Jacoca e o arisco do Gravatá ao alagadiço do vale. Fez dois balneários de águas tão límpidas e transparentes que ele próprio não resistiu e se banhou e os denominou de Diamante e Jericó, este último, à lembrança da cidade bíblica das palmeiras, berço da redenção de Israel. Secou uma porção de terra alagada que rodeava uma coroa no meio da mata fechada e deu-lhe o sugestivo nome de Ilha Bela.

Deu a Jacoca o abacaxi mais doce; a farinha de mandioca de alvura e finura incomparáveis a Ponta do Mato; a laranja mais doce e sumosa a Comum e Primavera; o beiju e o grude mais gostosos a Aningas; a goma de mandioca e a tapioca mais caprichosas a Coqueiros; a Mineiro, deu o picado receitado por Geraldo Abdias; ensinou a Cicinha, a arte da feitura da cocada preta e da branca, preparada com o coco tirado do futuro sitio de Manoel Pereira, na divisa de Muriú com Maxaranguape.

Plantou umas canas de valia, a partir de “soca” divina, dando matéria prima para adoçar a boca dos nativos, mesmo os mais amargosos pela dura vida do eito – mel de furo e refinado, rapadura, açúcar mascavo (impropriamente dito “bruto”) e açúcar branco; cachaça (que ninguém é de ferro) e álcool.

Semeou umas frutinhas doce-azedinhas no tabuleiro dos ariscos praieiros e adjacentes, tais que chamou de camboim, guajiru e massaranduba. Fincou uns troncos de árvores rugosas que nem os rostos de velhos muito mais velhos e as chamou de mangaba. Fincou paus mais ou menos linheiros, de copas ramosas e os considerou cajueiros. E se divertiu queimando as “catotas” nos lajedos para fustigar os calangos, as cobras e a própria pele.

Compôs o mais lindo amanhecer, no meio do oceano vegetal do vale, e o mais belo e nostálgico por do sol, por trás das ondulações do morro do Patu.

Era forte a influência mediterrânea do mestre de obras da Virgem e ele esolveu fundar a cidade nas encostas de uma pequena serra, à falta de falésias. E também, para dar um quê de ascencionalidade ao plano diretor da sua arquitetura. Nada que se assemelhasse a segregação ou divisão de castas, a partir de maior ou menor altura, mas uma insinuação, uma metáfora que sugerisse o plano evolutivo do ser humano, sempre para o alto, na direção de Deus.

Mas, para evitar dúvidas e insinuações, arrumou uma compensação. Se o lá-em-cima fosse, de fato, a ascensão, o lá-embaixo era a sua inspiração. Não há recompensa maior para a subida, que olhar o vale verde se espreguiçando todo lindo e verdoso na aba da colina.

Deu margem ao “lá-em-cima” e o “lá-embaixo”, simplificando a topografia e a geografia da cidade. Na compreensão dos habitantes, que sempre se referiam ao lá-em-cima como uma peregrinação penosa e cansativa, vencer a subida era um prêmio, pela visão que oferecia ao peregrino, o lá-embaixo. E assim a metáfora era assimilada. Para se chegar ao céu, era preciso muito esforço e muito sacrifício, mas valia a pena.

Da parte urbana, só cuidou para que quando a cidade sucedesse à briosa vila em que a freguesia se tornaria, plantassem pés de fícus benjamim nuns canteiros no meio da rua. Sombra e facilidade para as idas e vindas. E também para a alegria da meninada, que se enfeitiçaria com o som das modinhas assopradas por seu Alegria, dono do Circo Alegria, na dobradiça das folhas do fícus

Deu-se então que num domingo em que estava embriagado com a sua própria criação, decidiu se superar. Deixou-se levar pela onipotência megalômana, voou em linha quase reta até um ponto do oceano em território do município e convocou aquele que viria a ser Dorian Gray, mestre desenhista e colorista das azuis e verdes cartografias, para sugerir-lhe a paisagística do litoral da freguesia.

Areias alvas, coqueiros, muitos coqueiros, lagoas, mar tépido e calmo – sugeriu o pintor. E uns parrachos de contraponto, anteparo de predadores e de marés bravias. Até mesmo uns salpicos de sargaço. Então, usando a sua paleta criou uma cor especial para o mar: nem azul nem verde, sem deixar de ser azul, nem deixar de ser verde – uma cor especial, particular apenas àquela parte do oceano.

Bartola não conseguiu distinguir a cor dada pelo grande artista de outras que conhecia. Na sua percepção aquele colorido era comum, encontradiço em outras praias do litoral nordeste do continente brasileiro.

O pintor ofendeu-se e foi direto ao ponto – o anjo, apesar de criatura angelical, não tinha a retina, nem a íris do artista plástico, era uma espécie daltônica, porque havia consumido a sua percepção visual na embriaguez contemplativa da sua própria criação. Nesse ponto tornou-se grave e contundente – não usava a alma como guia. Até concedia que ele “sentia” com a alma, pois era poeta e imaginoso. Mas não via através desse filtro.

O artista, que “via” com a alma, lembrou Van Gogh quando disse que tudo estava na natureza, o artista apenas emprestava a sua alma. Ainda assegurou ao anjo que no futuro, os que amassem aquele mar, aquela nesga de céu, da praia, do sol luxuriantemente, delirantemente amarelo, iriam perceber essa diferença. A perspectiva do tempo das memórias faria a diferença.
Sem se dar por convencido, o fundador da cidade concedeu, no entanto, o benefício da dúvida, pelas credenciais do pintor. Despediram-se sem atritos.

No dia seguinte, avaliou a criação. Ainda insatisfeito, mas no geral pacificado, pensou no passo seguinte.

Se não poderia criar o ser humano, já concebido por Deus, o recriaria. De resto, todas as coisas já tinham sido criadas, ele apenas as escolheu, dando o jeito pedido por Nossa Senhora.
Mas havia algo que ele podia esbanjar-se na invenção. O perfil dos habitantes daquela cidade.

À “sua” matriz humana deu de beber água do Diamante e Jericó e a batizou com a água salobra do Olheiro, juntando água e sal na mesma cerimônia. Mimou-a com garapa, água de coco, suco de manga e de caju. Deu-lhe de pouca a média estatura, tez variando do negro ao branco, passando pelo mameluco e o mulato. Pernas firmes de bom andador de subidas e descidas, alavanca para os atoleiros dos alagadiços, boas para o ofício recadeiro e aviador e sustentação para o dia inteiro no corte de cana.

Alma leve, de passarinho cantador e madrugador. Formiga e cigarra. De missa e canjerê. Esperançoso. Todo dono da chã da alegria, mas sem exageros pois a sua natureza era meio reservosa.

Deu-lhe um chapéu de palha meio sobre o atrevido, um pito feito de imburana, um banho de rio com direito a cangapé, uma rede na varanda, comida no bucho e saúde que dê pro gasto - taí um ser humano feliz! Melhora se tiver um passarinho cativo, uma criaçãozinha no quintal, um burrinho de carga e um galo madrugador. ´Magine se tiver um roçado numa terrinha pouca cedida pelo patrão - vixe Maria!

Fez barateado, quase a preço de liquidação, o ser que vai habitar essa terra. E de pouquinhos teréns. Muitos são os seus sonhares, que ficam guardadinhos debaixo da moleira, e somente o tempo pra se interter entre uma e outra baforada do cachimbo, no terreiro, depois da janta.

Deu-lhes uns olhos de ver o vale, o céu azul de dia e o cobertor negro bordado de estrelas à noite, para agasalhá-lo na falta de fé, na frieza do desanimoso. Vez em quando deixou que pintasse uma lua muito soberba, pra alumiar os namoros, as serestas e as prosas; o rio d´água azul, a praia de Muriú. Uma que outra dança, coisa pouca, mas mui alegre, animada pelo baticum dos atabaques e a cadência dos pés no chão.

Á noite, os corpos nus se esfregando em cima das esteiras de palha, no chão de barro batido, suor com suor, dois num só, cavaleiro e montaria, promessa de cria que o leito da miséria é fecundo.

Os ouvidos de escutar o apito do trem, a tirada da Asa Branca na buzina de Chico Horácio, o saxofone de Zé Gago, o violão de Misael, os sinos “…com timbre de enxada velha que se põe a dizer o amém das ave-marias”, o badalar do relógio do campanário, os pregões dos vendedores ambulantes, as arengas dos botadores d´água com os “roxinhos”, o latido e o miado dos animais sem dono ou vigias das casas e as vozes das beatas nas procissões.

Zé Lemos que restauraria com o pai, seu Justo, as estampas sacras do teto da igreja matriz, cantaria com voz Vicentina Celestiniana, a canção “Porta Aberta”. E Minhém pensaria que era “cover” de Bob Nelson: “Eu pego meu cavalo e jogo o laço…”, os olhos de chinês com terçol, o bigode maior que o de Bienvenido Granda, uma tragédia de desafinos e de troca-letras.

As ventas sempre acesas para o cheiro da bagaceira e do mel; o aroma acre provocado pela umidade da chuva engravidando a terra, em pleno parto das ervas e das flores baldias; a água de cheiro escapulida da carapinha das beiradeiras; o cheiro profuso e confuso do “quadro” do mercado e do pátio da feira – uma mistura de tudo, até de mijo e cocô de gente e de animais.

O visgo açucarado no céu da boca dos cortadores de cana, cambiteiros e operários dos engenhos, o colorau da galinha caipira, o leite de coco e o propriamente dito ralado, presente nas mesas de café, almoço e jantar, o gosto do pãozinho quente, saído da fornalha da padaria de João Neto, a manteiga derretida espirrando nos cantos da boca e nos dedos, as piabas fritas com farinha na banha de porco, o torresmo chiando na panela.

É nesse ponto que me vem Bartolomeu e se lembra da fala, do modo como essa criatura vai-se comunicar uns com os outros. E quer mais, que ela fale até em pensamento, dela pra ela mesmo, e como fosse telepatia, com os pareceiros.

Descartou a fala dos doutores, dos padres e dos políticos – até mesmo dos escritores, que mais fosse a que é aprendida nas escolas. Queria um falar deles, inventado na precisão e na distração. Uma que fosse usada nas conversas e nos escritos, uma coisa só, sem o atrapalho de dois modos diferentes de se comunicar na nossa linguagem brasileira. Que besteira: falar de um jeito e escrever de outro. Quem já viu presepada igual?

Apurou as oiças e consultou o vento, os animais, as aves, os barulhos das feiras, dos partidos de cana, dos engenhos, dos canjerês, dos rios, do mar, o falatório dos meninos e dos velhos, a língua afiada da raiva e do despeito e a melosidade dos ditos de amor. Cascavilhou as frases cuspidas e mal empregadas, os chorares e os sorrisos, os mandos, os desmandos, os suspiros e as cavilações. Tornou-se o pé-de-ouvido cativo de cada um dos nativos.

Deu no que deu.

(*) É professor de Direito aposentado, escritor, advogado e presidente da ACLA.

Nenhum comentário:

Postar um comentário