MEMÓRIAS DA INFÂNCIA
Lúcia Helena Pereira
Lúcia Helena Pereira
Eu tinha cerca de dois anos e meio, quando iniciei, por exigência de mamãe, aulas de alfabetização com Valdinha (Valdecir Vilar de Queiroz Soares). Que doce e suave presença humana em minha vida! Sua casa cheirava a flores. De longe sentíamos os aromas do seu jardim - um verdadeiro éden - espargindo dos cravos, dálias, jasmins, rosas, bogaris, resedás, margaridas e outros espécimes vegetais que enchiam meus olhos desse encantamento.
Na casa branca havia um terraço adornado com um conjunto de cadeiras de ferro; jarros com beijos de várias cores; a cisterna (provocando-me uma sensação indizível) cortejada pela poética sombra de um caramanchão, cuja trepadeira exibia em seus galhos, pequeninas e mimosas rosas. Relembro as árvores do quintal: os pés de carambolas, laranjas da terra, pitangas, maracujás (imiscuindo-se nesse reino e acasalando-se com a exuberante trepadeira). Ainda ouço, como se fosse hoje, a cantiga das cigarras envaidecidas seduzindo aquele cenário!
Ao sair da aula, diariamente, lá estavam em minha casa, as minhas companheiras dos dias distantes da infância: Chiquinha e Bibiliu. Suadas e esbaforidas, com os cabelos arrepiados, logo anunciavam roteiros magistrais (que causariam inveja em Monteiro Lobato), num palavreado delicioso (pareciam anjos com suas trombetas): “Luça, tu nim sabe qui vimo um sapo seco e isturricado. Tava virado de papo pra riba, pertim da arvre da isquina do berro (a esquina da minha casa, onde um carneirinho apartado da cabra berrava, em dilacerante mágoa). O danado do sapo tá é dando siná de coisa rim, vombora logo interrá o bicho nojento, mode num pegá rindade im nós...”
Elas deveriam ter entre cinco a seis anos (pareciam gêmeas). Eram alegres, criativas, sempre satisfeitas, irradiando felicidade (de onde viria a felicidade dessas humildes criaturas, que amanheciam e anoiteciam em nossa casa?).
Muito astuciosas (longe dos olhos de mamãe e de Babá), certa vez apareceram com massa crua de pão e fomos para o quintal da minha casa. Lá, elas fizeram bonecos e bichinhos, utilizando caroços de frutas para fazerem os olhos e outros detalhes. Estavam “com a mão na massa” quando surgiu o dono da padaria (“c´as venta inguá os bueiros do ingenho baforando fumaça”) - segundo Bililiu. Estava diante de nós o dono da padaria que foi logo narrando o acontecido: “São essas duas espevitadas, senhor Abel e dona Áurea, mal tive tempo de impedir que me levassem boa porção de massa, logo deram no pé. São umas pestes, não deviam deixá-las com a filha de vocês...” (desabafou irritado). E papai, com a sua peculiar bondade, lhe disse: “Ora meu caro, são apenas crianças, pagarei os prejuízos..." Mamãe me proibiu de brincar com as meninas durante uns dias restringindo-me ao lazer com a mana Iara e algumas primas. Depois lhe pedi que mandasse buscar minhas amiguinhas. No dia seguinte, ao sair da aula, as minhas tristezas foram recompensadas com a chegada barulhenta das diletas companheiras, que, alheias às humilhações sofridas anteriormente traziam uma euforia contagiante: “Si Luça subesse, conto a gente brincô! Cumemo bolo de fubá na casa de dona Rosinha, a moça véia da Ingreja, que deu retaios mode nóis fazê vistidim pras bunecas. Fizemo de chita, de fustam, de bolinha e preguemos inté butão de ôro. Fumo vê armá o circo qui tinha girafa, lião, trigue, macaco e vimo os povo si pindurando n´aquelas corda cum tárbuas in tempo de cairim” (eram os trapezistas Mascotinha e Roger ensaiando para se apresentarem no circo Nerino). Impregnada das emoções daquelas novidades, essas “cenas” me pereceriam, hoje, ilustrações de um livro, do escritor Louis Carrol, deixando-me penetrar, a cada instante, no reino encantado das maravilhas de alguma Alice.
Eu tinha esse mundo em minha cabeça e em meu coração. Vivia-o com intensidade, sempre distante dos rigores de minha sábia mãe e dos olhares de Babá (Regina Dias).
Num desses dias de chuva forte (o vale ficava carregado de nuvens choronas), elas chegaram como presenças ensoloradas, sorrindo, pinotando, cantarolando e alegrando o ambiente. Traziam, com orgulho ímpar, um cachinho de flores “fisgado” dos jardins espalhados pelos caminhos. Bililiu, bem mais falante, fez uma leve vênia e disse: “Florinha mode Luça infeitá seu artá” (um oratório que mamãe colocara em meu quarto e de Iara, onde a imagem de Nossa Senhora da Conceição se destacava). Depois, foram tirando da mochila de pano que sempre traziam com elas, papel prateado (que revestia as carteiras de cigarros). Com esses papelotes elas colavam uns nos outros (a cola era artesanal, feita em casa). Ao secarem, davam um acabamento nas bordas brancas, com anilina de cores variadas (da caixa de trabalho de mamãe) e estavam prontos os colares. Dias depois, quando as chuvas saíam de férias, ficávamos no calçadão da minha casa, sentadas em tamboretes da cozinha para vendermos os colares. Elas imploravam: “Compre um colá que é do Rio de Janeiro: esse roxim e esse azuzim custam um tustãozim, o de prata é doistões. Cheque, se avexe, compre ó meno um...” No final da tarde, os colares estavam amassados e desbotados e o humilde comércio, logo falido!
Eram brincadeiras inocentes, sem nenhuma malícia. Falando nisso, um dia fomos à casa de dona Amélia Barroca, perto da linha do trem, na mesma rua em que morávamos. Ela vendia as mangas rosas mais belas e perfumadas, enfurnadas num baú de madeira. Logo na entrada viam-se vários pés de malícia que Chiquinha e Bililiu cantavam: “Sai malícia, teu nome é priguiça, vai drumi n´outo pasto qui aqui ocês num tem vez!” E dona Amélia abria um sorriso largo e nos abraçava dizendo palavras carinhosas e presenteando-nos com as saborosas mangas. Que terna lembrança dessa boa senhora!
Creio que Chiquinha e Bililiu continuam brincando, em algum lugar, trepadas em mangueiras, goiabeiras, assobiando como os passarinhos, olhando os circos e fazendo figurinhas com massa crua de pão. Onde estarão? Como reencontrar esses “mitos” da infância? Essas vozes que acodem-me em momentos de contemplação e de poesia?
“Arre, Luça, tás pirigando pegá catapora de nóis. Ramo vê cumo vai ficá se coçando, cum a cabeça duendo e os óios pegando fogo cumo brasa. Mai tem que ficá na cama e tumá bain cum fôia de sarsa isquentada, mode muxá as boinhas"(bolhinhas) dizia (Bililiu).
“Eu num digo nadim e só vô alertá uma veiz, pra num dizerim qui sô rim: o tá de Zeca qui mora pertim do cimitero anda vendo arma de tudo que é gente. Ele viu arma inté do finado Suares. E cumo é qui uma arma doutro canto vem isbarrar pur essas banda? Vomboro usá figa mode afastá essas arma. Tô inté tremendo cumo vara verde e num duvidio qui esse cundenado vem pegá in n´eu hoje de noite!” (dizia Chiquinha, nervosamente, na sua ingenuidade).
Essas palavras ressoam em meus ouvidos, como sinfonias diletas.
E quanta saudade sinto!!!
Nota: Fiz questão de usar a linguagem delas.
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